Mundo, mundo, vasto mundo
Se eu me chamasse Raimundo
Seria uma rima, não seria uma
solução
Mundo, mundo, vasto mundo
Mais vasto é meu coração
O que quer o
poeta com esses versos aparentemente inocentes? De tão famoso, ninguém precisa fazer
esforço para lembrar. Em todos os cantos se evoca esse trecho do poema de sete
faces de Carlos Drummond de Andrade, com uma boa pitada de humor. Esse trecho
do poema é apenas um jogo de palavras para brincar, rimar mundo com Raimundo,
nome tão comum e corriqueiro? Por que antepor o mundo e Raimundo? Vamos intentar
uma interpretação possível desse poema do poeta de Itabira.
O poema é
parte, como dito, do Poema de Sete Faces. Já o nome Sete Faces evoca o símbolo
do sete, mas não será explorado nesse momento. O poema inicia com a visita de
um anjo que vive nas sombras e dizendo para o poeta ser gauche na vida,
ou seja, um sujeito meio sem jeito, que não se enquadra muito. Que tipo de anjo
para dar uma orientação dessas? Por que o autor que era ateu buscou um anjo das
sombras para essa orientação? O poema se desenvolve, mas o trecho que nos
interessa por ora é o que está destacado no texto.
O autor faz uma relação entre o mundo e Raimundo. Diz que o mundo é vasto e que se chamasse Raimundo isso seria apenas uma rima e não uma solução. Mas qual a relação entre a realidade-palavra mundo com a realidade-palavra Raimundo? A relação está no próprio texto: é uma relação linguística. O que fica de relacional entre o mundo e Raimundo, uma pessoa, é uma relação de linguagem. O que se tem aqui é que Drummond nos indica que não existe uma relação analógica/metafísica entre o ser racional e o mundo exterior, mas apenas uma relação de linguagem. A relação do indivíduo com o mundo não se dá através de uma relação do tipo analógica, mas meramente linguística.
Segundo a visão filosófica do realismo moderado, o ser humano é um animal racional, que tem relação com
outros seres do mundo, como o animal que se move, mas não é racional, com o
mineral que tem existência, mas não tem outros atributos próprios dos seres mais complexos; essa relação seria
rechaçada no poema de Drummond como no trecho “se eu me chamasse Raimundo isso
só seria uma rima, mas não uma solução”. Essa “solução” metafísica, que está
expressa em São Paulo, quando diz que as qualidades de Deus se fizeram visíveis
nas criaturas, é rechaçada por Drummond, que era ateu, para afirmar que a relação
que Raimundo (o nome do eu poético) tem com o mundo é apenas rima, ou seja, um jogo de
linguagem. É a linguagem que cria as relações, que cria o ser que vai se relacionar
com o real.
Essa visão traduzida
no verso de Drummond é muito semelhante à doutrina de Guilherme de Ockham que
traz como ponto fundamental a “negação da existência dos conceitos universais
fora do pensamento”. Segundo Ockham, os universais não se realizariam de
maneira nenhuma nas coisas, só existindo na mente, seriam, assim, meros “flatus
vocis”.[1] Ou
seja, o mundo só existe na mente, e a relação dele com o ser é um jogo de palavras.
Mais vasto é
meu coração... O trecho encerra chamando atenção para o coração, o centro simbólico
que irradia uma realidade para além do mundo e da relação da linguagem. Para
além da linguagem existe uma língua do coração que está acima da rima verbal e
do mundo-verbal, por isso que mais vasto é esse centro irradiador
chamado coração. O autor menciona então duas camadas. A camada verbal representada por Raimundo-mundo e a camada mais elevada que habita no coração e ultrapassa a realidade verbal. O coração faz questionamentos que a inteligência é incapaz. "Meus olhos não perguntam nada". Aqui encerramos uma face do poema.
Recife, 16 de abril de 2024.
Antônio Manuel da Silva Filho