27 julho, 2022

Direito Natural: de Antígona de Sófocles ao Tempo Atual


                                                            

                                                                           Paulo Eduardo Razuk

                                                               Desembargador aposentado do TJSP

                                                               Bacharel  e Doutor em Direito pela USP

 

Antígona é uma tragédia grega escrita por Sófocles (496/406 a.C.), que, ao lado de Ésquilo e Eurípedes, compõe o triunvirato do teatro grego, que conserva grande atualidade, pelos temas de alta relevância para a alma humana que abordam.

Na obra de Sófocles, destaca-se a chamada trilogia tebana, composta pelas peças Édipo Rei, Édipo em Colono e Antígona. Na primeira, o personagem mata o pai, Laio, rei de Tebas, e se casa com a mãe, Jocasta.  A segunda descreve o exílio do personagem em Colono. Na terceira, sobressai o conceito de direito natural.


 Édipo tivera com Jocasta quatro filhos: Polinice, Etéocles, Ismênia e Antígona. Em meio a uma guerra civil, na disputa pela coroa de Tebas, os filhos varões acabam por matar-se um ao outro. Sobe ao trono Creonte, irmão de Jocasta, que decide pelo sepultamento de Etéocles conforme o cerimonial devido aos mortos; Polinice seria largado aos cães e aves de rapina.

 Antígona opõe-se ao tirano, deixando claro que não abandonará o corpo do irmão sem o devido rito sagrado:

 “Sim, porque não foi Zeus que o promulgou; e a Justiça, a deusa que habita com as divindades subterrâneas, jamais estabeleceu tal decreto entre os humanos; nem eu creio que teu édito tenha força bastante para conferir a um mortal o poder de infringir as leis divinas, que nunca foram escritas, mas são irrevogáveis, não existem a partir de ontem, ou de hoje; são eternas, sim! E ninguém sabe desde quando vigoram! Tais decretos, eu, que não tenho o poder de homem algum, posso violar sem que por isso me venham a punir os deuses!“

O tema do direito natural foi abordado por Sócrates (470/399 a.C.), que reconhece, acima das leis mutáveis e escritas, a existência de uma lei natural, independente do arbítrio humano, universal, fonte primordial de todo o direito positivo, expressão da vontade divina promulgada pela voz interna da consciência. A lei natural supõe um ser superior ao homem, um legislador que a promulgou e sancionou.

A página mais vibrante do direito natural é de Cícero (106/43 a.C.), que alude à verdadeira lei, a reta razão, conforme a natureza, em todos inscrita, constante, sempiterna:

“Se a vontade dos povos, os decretos dos chefes, as sentenças dos juízes, constituíssem o direito, então para criar o direito ao latrocínio, ao adultério, à falsificação dos testamentos, seria bastante que tais modos de agir tivessem o beneplácito das sociedades. Se tanto fosse o poder das sentenças e das ordens dos insensatos, que estas chegassem ao ponto de alterar, com suas deliberações, a natureza das coisas, por que motivo não poderiam os mesmos decidir que o que é mau e pernicioso se considerasse bom e salutar? Ou por que motivo a lei, podendo transformar uma injúria em direito, não poderia converter o mal no bem? É que, para distinguir as leis boas das más, outra norma não temos  que a da natureza” 

 Santo Agostinho (354/430 d.C.) concebeu a lei eterna, fruto da razão e da vontade de Deus, que impõe o cumprimento e a conservação da ordem natural e proíbe a sua transgressão.  Essa lei é participada ao homem por meio da lei natural, impressa na mente, que a descobre por iluminação intelectual.  Não há alma dotada de razão em cuja consciência Deus não fale. Quem escreveu a lei natural no coração do homem senão Deus?

Santo Tomás de Aquino (1225/1274) na obra De Lege traz a classificação das leis: eterna, natural e positiva. A lei eterna  é a razão  da divina sabedoria que dirige todos os atos e movimentos para seu devido fim. A lei natural é a participação da lei eterna na criatura racional, na qual Deus infundiu a luz do intelecto, pela qual sabemos o que deve ser feito e o que deve ser evitado. A lei positiva é a lei humana, que realiza a essência da lei, quando deriva da lei natural.

Para José Pedro Galvão de Sousa (1912/1992), deve se distinguir um duplo prisma: o da ciência e o da filosofia do direito. A filosofia do direito tem por objeto a essência do direito, quid sit jus. A ciência do direito tem por objeto o conhecimento empírico do direito. Como o positivismo filosófico não conseguiu sobrepor-se à metafísica, tampouco ao positivismo jurídico foi possível banir da filosofia do direito a ideia de direito natural.

 Negar o direito natural é negar o princípio absoluto da justiça. Ora, o direito ou é objeto da justiça, ou é simples produto das flutuações do arbítrio legislativo. No primeiro caso, mantém a ciência jurídica a dignidade que já lhe haviam atribuído os romanos, definindo-a como o conhecimento das coisas justas e injustas. Mas, no segundo caso, torna-se uma simples arte a serviço da habilidade ou da força.

Eliminado o conceito de direito natural, não há nenhuma razão suficiente para que o legislador deva promover o bem comum, os súditos devam obedecer à autoridade e os contratos devam ser observados.

Por isso, o estado de direito supõe necessariamente o direito natural. A subordinação do estado à ordem jurídica pressupõe um critério objetivo de justiça, transcendente em relação ao direito positivo, e do qual este depende. Tal critério decorre da existência do justo por natureza, sem o que o direito se reduziria à mera expressão da vontade da força social dominante. O jus quia jussum est e não o jus quia justum est.

 A ideia de direito natural foi primeiro exposta por Sófocles, na boca da personagem Antígona, tendo sido desenvolvida por teólogos, filósofos e juristas que a abraçaram.

 

 

BIBLIOGRAFIA

1.      Pe. Leonel Franca – Noções de História da Filosofia, 19ª edição

Livraria Agir, Rio de Janeiro, 1967.

2.     Alexandre Correia – Concepção Tomista do Direito Natural

Revista dos Tribunais, São Paulo, 1972.

3.    Alceu Amoroso Lima – Introdução ao Direito Moderno

Livraria Agir, 3ª edição, Rio de Janeiro, 1978.

4.    José Pedro Galvão de Souza – Direito Natural, Direito Positivo e Estado de Direito

Revista dos Tribunais, São Paulo, 1977.

 (Ed. atual – Resistência Cultural, São Luiz do Maranhão)

5.    Ricardo Dip – ABC  do Direito Natural

Editora Lepanto, São Paulo, 2020.

6.    Teatro Grego, tradução de J. B. de Mello e Souza

Jackson Editores, Rio de Janeiro, 1950.

7.     Direito Natural – Autores diversos.

Coordenação de Carlos Aurelyo Motta de Souza.

Cidade Nova, São Paulo, 2012.

Tomás de Aquino e o Direito Natural – José Nedel

8.     Santo Tomás de Aquino – Os Sete Pecados Capitais.

Tradução de Luiz Jean Lauand

Martins Fontes, São Paulo, 2004.