03 maio, 2021

O Direito Natural e o Culto Religioso

 

                                      

                     
Paulo Eduardo Razuk

I

Santo Tomás de Aquino distingue a lei eterna, ordenação da sabedoria divina que governa todas as criaturas; a lei natural, participação da lei eterna na criatura racional; e a lei positiva, uma ordenação da razão promulgada para o bem comum, pela autoridade, civil ou eclesiástica (1).

Na lição de José Pedro Galvâo de Souza, as leis não podem ser elaboradas arbitrariamente pelo legislador. Há uma justiça anterior e superior à lei escrita, há direitos que precedem a feitura das normas estatuídas pelo poder civil competente. Esta justiça e estes direitos não dependem das prescrições da ordem jurídica positiva, fundamentam-se na lei natural, a qual, por sua vez, é uma participação da lei eterna no homem (2).

Ninguém melhor que Cícero discorreu sobre a lei natural, a verdadeira lei, a reta razão, conforme a natureza, em todos inscrita, constante,  sempiterna (3). “Se a vontade dos povos, os decretos dos chefes, as sentenças dos juízes, constituíssem o direito, então para criar o direito ao latrocínio, ao adultério, à falsificação dos testamentos, seria bastante que tais modos de agir tivessem o beneplácito das sociedades. Se tanto fosse o poder das sentenças e das ordens dos insensatos, que estas chegassem ao ponto de alterar, com suas deliberações, a natureza das coisas, por que motivo não poderiam os mesmos decidir que o que é mau e pernicioso se considerasse bom e salutar? Ou por que motivo a lei, podendo transformar uma injúria em direito, não poderia converter o mal no bem? É que, para distinguir as leis boas das más, outra norma não temos que não a da natureza” (4).

Todavia, fora Sófocles, na tragédia Antígona, que houvera posto na boca da personagem a fala mais candente em prol do direito natural, a propósito do direito de sepultar condignamente o irmão Polinice, contrariando decreto do rei Creonte:

“Sim, porque não foi Zeus que o promulgou; e a Justiça, a deusa que habita com as divindades subterrâneas jamais estabeleceu tal decreto entre os humanos; nem eu creio que teu édito tenha força bastante para conferir a um mortal o poder de infringir as leis divinas, que nunca foram escritas, mas são irrevogáveis, não existem a partir de ontem, ou de hoje; são eternas, sim! E ninguém sabe desde quando vigoram! Tais decretos, eu, que não tenho o poder de homem algum, posso violar sem que por isso me venham a punir os deuses!“ (5).

II

 

O direito à liberdade é inato ao ser humano, tendo em vista a dignidade da sua pessoa. É multifacetado, englobando a liberdade física, de pensamento, de expressão e de religião.

O direito à liberdade religiosa desenvolve-se em diferentes planos, de pensamento íntimo, da vivência particular e de expressão social e comunitária. No plano pessoal, de pensar e viver de acordo com a sua consciência, sem coação externa, excluída toda discriminação jurídica e política por motivo religioso, No plano social, de garantia do direito ao exercício público e comunitário da religião. É da natureza social do homem a vivência da religião em comunidade (6).

 Ao tempo do Império, o Brasil adotava o Catolicismo como religião oficial, com a subordinação da Igreja ao Estado, em um sistema chamado padroado, aplicação da teoria do regalismo, pela qual a jurisdição eclesiástica se subordinava à civil.

Com a República, houve a separação da Igreja e do Estado, conforme o Decreto nº 119-A de 7 de janeiro de 1890 do Governo Provisório, que proibiu a intervenção da autoridade civil, federal ou estadual, em matéria religiosa. O art. 19, I, da Constituição Federal de 1988 proíbe a União, o Estado e o Município de embaraçar o funcionamento das igrejas e cultos religiosos.

Em relação à Igreja Católica Apostólica Romana, o Brasil celebrou concordata com a Santa Sé, aprovada pelo Decreto Legislativo nº 688 de 7 de outubro de 2009 e promulgada pelo Decreto Executivo nº 7107 de 11 de janeiro de 2010, passando a integrar o ordenamento jurídico brasileiro. O art. 2º de tal tratado reconhece, com fundamento no direito de liberdade religiosa, à Igreja Católica o direito de desempenhar a sua missão apostólica, garantindo o exercício público de suas atividades, observado o ordenamento jurídico brasileiro.

Contudo, se a liberdade de pensamento e de consciência tem caráter absoluto, quanto às manifestações externas e sociais, tal liberdade tem caráter relativo, podendo ser limitada pela ordem jurídica positiva, com a finalidade de salvaguardar o bem comum (7).                                                               

 Assim sendo, lícita se mostra a restrição ao culto religioso presencial, com a finalidade de preservar a saúde pública, enquanto perdurar a pandemia, para evitar o contágio por vírus mortal.

De outro lado, é inegável que vem sendo imposto um comportamento obrigatório, via decreto, ora positivo, com o uso compulsório de máscara, ora negativo, com a restrição de cultos religiosos, em função de uma situação excepcionalíssima. Que não se tome embalo, para chegar à distopia, como em Admirável Mundo Novo, 1984 e Fahrenheit 451. O preço da liberdade é a eterna vigilância!

 

1)  Leonel Franca, Noções de História da Filosofia, 19ª ed., p. 107, Agir, Rio, 1967

2) Direito Natural, Direito Positivo e Estado de Direito, p. 5 e 70, RT, S. Paulo, 1977

3) De Republica, II, 22

4) De Legibus, I, 16

5) Teatro Grego, tradução de J. B. de Mello e Souza, p. 137/138, Jackson Editores, Rio, 1950

6) Rafael Llano Cifuentes, Curso de Direito Canônico, p. 140/144, Saraiva, S. Paulo, 1971

7) idem, ibidem, p. 146