Paulo Eduardo Razuk
I
Santo Tomás de Aquino distingue a
lei eterna, ordenação da sabedoria divina que governa todas as criaturas; a lei
natural, participação da lei eterna na criatura racional; e a lei positiva, uma
ordenação da razão promulgada para o bem comum, pela autoridade, civil ou
eclesiástica (1).
Na lição de José Pedro Galvâo de Souza, as leis não podem ser elaboradas arbitrariamente pelo legislador. Há uma justiça anterior e superior à lei escrita, há direitos que precedem a feitura das normas estatuídas pelo poder civil competente. Esta justiça e estes direitos não dependem das prescrições da ordem jurídica positiva, fundamentam-se na lei natural, a qual, por sua vez, é uma participação da lei eterna no homem (2).
Ninguém melhor que Cícero
discorreu sobre a lei natural, a verdadeira lei, a reta razão, conforme a
natureza, em todos inscrita, constante, sempiterna
(3). “Se a vontade dos povos, os decretos dos chefes, as sentenças dos juízes,
constituíssem o direito, então para criar o direito ao latrocínio, ao
adultério, à falsificação dos testamentos, seria bastante que tais modos de
agir tivessem o beneplácito das sociedades. Se tanto fosse o poder das
sentenças e das ordens dos insensatos, que estas chegassem ao ponto de alterar,
com suas deliberações, a natureza das coisas, por que motivo não poderiam os
mesmos decidir que o que é mau e pernicioso se considerasse bom e salutar? Ou
por que motivo a lei, podendo transformar uma injúria em direito, não poderia
converter o mal no bem? É que, para distinguir as leis boas das más, outra
norma não temos que não a da natureza” (4).
Todavia, fora Sófocles, na
tragédia Antígona, que houvera posto na boca da personagem a fala mais candente
em prol do direito natural, a propósito do direito de sepultar condignamente o
irmão Polinice, contrariando decreto do rei Creonte:
“Sim, porque não foi Zeus que o
promulgou; e a Justiça, a deusa que habita com as divindades subterrâneas
jamais estabeleceu tal decreto entre os humanos; nem eu creio que teu édito
tenha força bastante para conferir a um mortal o poder de infringir as leis
divinas, que nunca foram escritas, mas são irrevogáveis, não existem a partir
de ontem, ou de hoje; são eternas, sim! E ninguém sabe desde quando vigoram!
Tais decretos, eu, que não tenho o poder de homem algum, posso violar sem que
por isso me venham a punir os deuses!“ (5).
II
O direito à liberdade é inato ao
ser humano, tendo em vista a dignidade da sua pessoa. É multifacetado,
englobando a liberdade física, de pensamento, de expressão e de religião.
O direito à liberdade religiosa
desenvolve-se em diferentes planos, de pensamento íntimo, da vivência
particular e de expressão social e comunitária. No plano pessoal, de pensar e
viver de acordo com a sua consciência, sem coação externa, excluída toda
discriminação jurídica e política por motivo religioso, No plano social, de
garantia do direito ao exercício público e comunitário da religião. É da
natureza social do homem a vivência da religião em comunidade (6).
Ao tempo do Império, o Brasil adotava o Catolicismo
como religião oficial, com a subordinação da Igreja ao Estado, em um sistema
chamado padroado, aplicação da teoria do regalismo, pela qual a jurisdição
eclesiástica se subordinava à civil.
Com a República, houve a
separação da Igreja e do Estado, conforme o Decreto nº 119-A de 7 de janeiro de
1890 do Governo Provisório, que proibiu a intervenção da autoridade civil,
federal ou estadual, em matéria religiosa. O art. 19, I, da Constituição
Federal de 1988 proíbe a União, o Estado e o Município de embaraçar o
funcionamento das igrejas e cultos religiosos.
Em relação à Igreja Católica
Apostólica Romana, o Brasil celebrou concordata com a Santa Sé, aprovada pelo
Decreto Legislativo nº 688 de 7 de outubro de 2009 e promulgada pelo Decreto
Executivo nº 7107 de 11 de janeiro de 2010, passando a integrar o ordenamento
jurídico brasileiro. O art. 2º de tal tratado reconhece, com fundamento no
direito de liberdade religiosa, à Igreja Católica o direito de desempenhar a
sua missão apostólica, garantindo o exercício público de suas atividades,
observado o ordenamento jurídico brasileiro.
Contudo, se a liberdade de
pensamento e de consciência tem caráter absoluto, quanto às manifestações
externas e sociais, tal liberdade tem caráter relativo, podendo ser limitada
pela ordem jurídica positiva, com a finalidade de salvaguardar o bem comum (7).
Assim sendo, lícita se mostra a restrição ao
culto religioso presencial, com a finalidade de preservar a saúde pública,
enquanto perdurar a pandemia, para evitar o contágio por vírus mortal.
De outro lado, é inegável que vem
sendo imposto um comportamento obrigatório, via decreto, ora positivo, com o
uso compulsório de máscara, ora negativo, com a restrição de cultos religiosos,
em função de uma situação excepcionalíssima. Que não se tome embalo, para
chegar à distopia, como em Admirável Mundo Novo, 1984 e Fahrenheit 451. O preço
da liberdade é a eterna vigilância!
1) Leonel Franca,
Noções de História da Filosofia, 19ª ed., p. 107, Agir, Rio, 1967
2) Direito Natural, Direito Positivo e Estado de Direito, p.
5 e 70, RT, S. Paulo, 1977
3) De Republica, II, 22
4) De Legibus, I, 16
5) Teatro Grego, tradução de J. B. de Mello e Souza, p.
137/138, Jackson Editores, Rio, 1950
6) Rafael Llano Cifuentes, Curso de Direito Canônico, p.
140/144, Saraiva, S. Paulo, 1971
7) idem, ibidem, p. 146