21 junho, 2020

O Reflexo da Ordem Celestial em As Meninas de Diego Velasquez


                                                                                              
         Já nos referimos à hierarquia angelical de Santo Tomás de Aquino. A Corte Celestial é composta de nove círculos angélicos, agrupados em três coros, cada qual com suas três hierarquias.  Segundo a importância de cada classe, referida na proximidade de Deus, o primeiro coro é formado por serafins, querubins e tronos. O segundo por dominações, virtudes e potestades. O terceiro por principados, arcanjos e anjos. O estabelecimento das hierarquias é necessário à ordem, senão haveria a multidão de anjos desgovernada.

Diego Velázques
             Conforme Orlando Fedeli, a ordem sábia e proporcionada com que os anjos se hierarquizam é o elemento unificador de tantas desigualdades proporcionadas. Em toda a natureza se encontra a harmonia de elementos diversificados na unidade.


     Para o Doutor Angélico, a hierarquia humana está compreendida na ínfima hierarquia celeste, não podendo os homens ser transferidos para as ordens dos anjos, assim como os anjos de ínfima hierarquia nunca são transferidos para a média ou a primeira..

      Segundo o Aquinatense, pode-se descobrir, nas coisas humanas, um símile das ordens em questão. Uma hierarquia é uma multidão ordenada, senão seria confusa. Embora sejam muitas as ordens de uma mesma sociedade, podem reduzir-se a três, por ter qualquer multidão princípio, meio e fim. Portanto, há tríplice ordem de homens na sociedade:  uns são superiores, como os nobres; outros médios,  como o povo honrado; outros inferiores, como o  povo humilde.

       Assim, se não houver hierarquia, não haverá ordem, mas uma multidão confusa, caótica, ingovernável. Contudo, a ordem terrena, ao contrário da celeste,  é mutável: pode-se subir ou descer na hierarquia social, pelo mérito ou pelo malfeito.

                   
 Uma obra de arte que espelha tal cosmovisão é o quadro As Meninas  de Diego Velasquez, concluído em 1656, no Real Alcázar de Madrid, durante o reinado de Felipe IV, que se encontra hoje no Museu do Prado.

 A figura central da pintura é a Infanta Margarida Teresa, então com cinco anos de idade, a quem todas as demais reverenciam. À época, era a herdeira do trono, porque sua irmã mais velha, Maria Teresa, se casara com Luís XIV, Rei da França, com o que ficou excluída da linha de sucessão espanhola. Seu irmão mais velho, Baltazar Carlos, já morrera e seu irmão mais novo, Carlos, ainda não havia nascido. Como Carlos II, seria o último Habsburgo a ocupar o trono espanhol. Margarida viria a casar-se com Leopoldo I, soberano do Sacro Império Romano-Germânico.

              Em função da figura central, distribuem-se os demais personagens, tanto mais próximos quanto a sua importância.

              As damas que ladeiam a princesa, as mais próximas, são da alta nobreza espanhola. À direita, D. Isabel de Velasco, filha do Conde de Fuensalida, que viria a casar-se com o Duque de Arcos. À esquerda D. Maria Agustina Sarmiento de Sotomayor, filha do Conde de Salvatierra, que convolaria núpcias com o Conde de Peñaranca, Grande de Espanha.  Ambas se reclinam em especial reverência ante a real pessoa.

                Por detrás de D. Isabel está a viúva D. Marcela de Ulloa, guarda-mor da princesa. A seu lado, meio em penumbra, é D. Diego Ruiz-Ascona, Aio dos Infantes de Espanha.

                 Ao fundo do quadro, na parte luminosa, fica D. José Nieto Velasquez, parente do pintor, aposentador da Rainha.

                À esquerda, diante de uma tela, situa-se em pé, segurando paleta e pincel, o pintor, que busca reconhecimento do seu valor pessoal e da pintura como arte, mais que ofício.

                 Em um espelho, atrás do pintor, reflete-se a imagem dos reis, pais da princesa. É um truque, pois a sua real presença exigiria que estivessem no centro do quadro e a eles todos se voltariam.

             Por último, dois anões, figuras que perturbam o equilíbrio da obra. Mari-Bárbola é hidrocéfala, estando a segurar uma pequena bolsa com moedas, tal como Judas Iscariotes, o que representa a cobiça, pecado capital. A seu lado, Nicolasito Pertusato, a  pisar o rabo do cão, como o próprio mal a importunar a obediência. Seria o prenúncio da Revolução, a clamar pela igualdade, para destruir o equilíbrio da ordem hierárquica das criaturas, conforme o plano divino?  A imitação da revolta de Lúcifer, o anjo rebelde, inimigo do gênero humano?

                Enfim, o quadro é a obra-prima da arte barroca, que a todos encanta e que esconde inúmeras possibilidades de interpretação.



Por Paulo Eduardo Razuk, desembargador aposentado do TJSP.
São Paulo, 21 de junho de 2020.

Fontes:

Santo Tomás de Aquino, Suma Teológica I, questões 102 a 108.

Orlando Fedeli, Música e Beleza, 1ª edição, 2012, livro digital gratuito, site baixe livros.

www.wikipedia.org/wiki/As_Meninas_(Velasquez)