15 setembro, 2017

CONVERSA SOBRE SEM E JAFETH OU A FILOSOFIA SERVA DA TEOLOGIA.


Ora os filhos de Noé, que saíram da arca, eram Sem, Cam e Jafeth. Cam é o pai de Canaan. Estes são os três filhos de Noé, e por eles se propagou todo o gênero humano sobre toda a terra. Noé, que era agricultor, começou a cultivar a terra e plantou vinha. Tendo bebido muito vinho, embriagou-se e apareceu nu na sua tenda. Cam, pai de Canaan, tendo visto a nudez de seu pai, saiu fora a dizê-lo a seus dois irmãos. Porém Sem e Jafeth puseram uma capa sobre os seus ombros e, andando para trás, cobriram a nudez de seu pai: assim, tendo o rosto voltado, não viram sua nudez. Quando Noé, despertando da embriaguez, soube o que lhe tinha feito o seu filho mais novo, disse: Maldito seja Canaan! Ele será o servo dos servos de seus irmãos. Depois disse: Bendito seja o Senhor Deus de Sem, e Canaan seja seu escravo. Dilate Deus a Jafeth, e habite Jafeth nas tendas de Sem, e Canaan seja seu escravo. Gênesis, 9, 18-27.

Habite Jafeth nas tendas de Sem. Quem permite que alguém habite na sua tenda pode mais do que o inquilino, tem precedência. Isso parece claro. Sem tem precedência sobre Jafeth, tem mais direitos, digamos assim.

Misteriosa frase de Noé que descortina uma realidade histórica, simbólica e metafísica das mais belas. Aqui está exposto apenas uma perspectiva que o autor julga fazer sentido e propõe como uma interpretação simbólica da bênção de Noé e da irmandade coesa entre Jafeth e Sem.


Sabe-se que a bênção de um pai determina a história do filho, do seu inferior. A maldição também acarreta uma série de consequências negativas para aquele que a sofreu. Na passagem destacada acima fica claro que a maldição que recaiu sobre Cam fará sua geração escrava.

Cabe-nos, no entanto, analisar o trecho que fala da habitação de Jafeth nas tendas de Sem. Antes, porém, não é difícil dizer que do tronco de Sem saiu o povo semita, o povo hebreu, e sua descendência, tendo Abraaão, David e culminando no ápice da história com o nascimento do Verbo Encarnado.

A geração de Sem foi o povo da Antiga Aliança, o povo da revelação, aquele que prescindiu do conhecimento filosófico, mas obteve a graça de ser escolhido por Deus para arar primeiro a sua vinha em vistas do nascimento de Cristo. Pode-se dizer que o povo hebreu foi o povo sacerdotal, que cultuou o Deus verdadeiro oferecendo holocausto. Foi o povo que levou a Fé verdadeira e que do seu leito saiu o Salvador de todo o gênero humano. Na tenda de Sem habitava a Fé verdadeira.

Por seu lado quem foi o povo de Jafeth? Diz-nos Flávio Josefo no seu livro História dos Judeus:
Cap. 6, 18. Gênesis 10. Posição 448 do Kindle
“Os filhos dos filhos de Noé, para honrar-lhe a memória, deram os próprios nomes aos países onde se estabeleceram (...) Javã deu o nome à Jônia e toda a nação dos gregos.”

Ora, o famoso historiador judeu do início do cristianismo aponta uma origem comum do povo grego com o povo hebreu. Eles seriam, digamos assim, primos. Há ainda diversas evidências que ligam a origem comum desses povos, como exemplo a semelhança do alfabeto semítico com o alfabeto grego, que daria um artigo mais especializado, o que não é de interesse aos limites aqui traçados.

Fato é que a informação de que a geração de Jafeth chega nos gregos nos interessa e nos parece muito proposital, muito conveniente e totalmente acorde com a profecia proferia pelo seu avô comum, Noé.

Se o povo de Sem foi a nação da Fé verdadeira, não precisa de muito latim para afirmar que o povo de Jafeth foi o povo que ergueu a razão a um patamar quase que milagroso: não foram os gregos os pais da filosofia?

Aqui parece que a bênção de Noé determinou o benefício divino e a explicação espiritual de os gregos chegarem de forma espetacular tão longe no conhecimento da filosofia. Há filósofo moderno, cujo nome não quero lembrar, que afirma que a filosofia atual nada mais é do que notas de rodapé escritas por Platão. E o que falar de Aristóteles? Poderia haver progresso científico sem as bases da filosofia grega? Poderia haver a pujança do mundo ocidental sem a filosofia de Sócrates?

Para progredir no conhecimento da verdade o homem se vale dos recursos da filosofia. Vale lembrar o ponto 3 da encíclica Fides et Ratio de São João Paulo II:

De entre os recursos que o homem se vale sobressai a filosofia, cujo contributo específico é colocar a questão do sentido da vida e esboçar a resposta: constitui, pois, uma das tarefas mais nobres da humanidade. O termo filosofia significa, segundo a etimologia grega, « amor à sabedoria ». Efectivamente a filosofia nasceu e começou a desenvolver-se quando o homem principiou a interrogar-se sobre o porquê das coisas e o seu fim. Ela demonstra, de diferentes modos e formas, que o desejo da verdade pertence à própria natureza do homem. Interrogar-se sobre o porquê das coisas é uma propriedade natural da sua razão, embora as respostas, que esta aos poucos vai dando, se integrem num horizonte que evidencia a complementaridade das diferentes culturas onde o homem vive.

Esse apelo racional em busca da verdade nasceu no seio do povo de Jafeth. Já a Verdade feito carne (Verbo caro factum est) nasceu de uma mulher semita, a mais perfeita das criaturas de Deus. Faltava o esforço racional se encontrar com a Verdade mesma, tão cheia de misericórdia e amor pelos homens. Aquela mesma verdade que faz o fardo ser leve e suportável, que é proporcional ao homem.

E Noé perdeu a razão e foi visto nu pelo seu próprio filho, que apontava sua nudez. Assim também os nossos primeiros pais precisaram se cobrir, quando perderam a razão e comeram do fruto proibido. O próprio Deus, em sua misericórdia, cobriu a nudez de Adão e Eva, envergonhados na embriaguez do pecado.

Quando Noé estava maculado pela indignidade da nudez, tocado pelo inebriar, Sem e Jafeth cobriram sua nudez. A Fé (Sem) e a Razão (Jafeth) redimiram de seu estado.

Noé disse que Jafeth iria habitar nas tendas de Sem. Logo, é de concluir que a razão deve habitar na tenda da Fé, que a razão deve ser dócil à fé, como diziam os antigos: philosophia ancila teologiae. Não a razão elevada ao altar de Deus, não a destruição da razão, como querem os gnósticos, para dela fazer estranha à casa de Sem. Mas a razão que serve à teologia, que está aquém da teologia, mas que não se aparta e nem dela fica contrária.

Aqui também podemos avançar e analisar até mesmo a relação do poder civil, fundado na razão natural do direito, e do poder eclesiástico, fundado na Fé. Sendo um inferior ao outro, um em serviço dócil ao outro, em uma unidade irmanada para reconhecer Deus como seu único Senhor e dar ao homem sua dignidade na história.

Belíssimo início da encíclica já comentada: A fé e a razão (fides et ratio) constituem como que as duas asas pelas quais o espírito humano se eleva para a contemplação da verdade.

Que a razão, a filosofia, a vera filosofia, habite as tendas da fé para os que são chamados, tanto judeus como gregos, reconheçam a sabedoria de Deus. 1 Coríntios 1:24 

Antonio Manuel


À luz do texto acima, as considerações de Marcelo Andrade.

Esta passagem bíblica é de uma riqueza ímpar e permite longa meditação.

Vemos na passagem, a tríade: caridade, justiça e sabedoria.

Noé tomou o vinho (que representa, segundo S. Tomás, a caridade, justiça e sabedoria) que inebria, símbolo da caridade (virtude teologal), Jafeth simboliza a justiça (virtude cardeal) e Sem, a sabedoria (dom do Espírito Santo), estas servem à caridade, a maior virtude, ou seja, temos de usar a razão e a fé para fazer caridade. Curioso que a razão e a fé descortinam os mistérios do mundo e Sem e Jafeth cortinaram o pai.

Ora, a nudez relaciona-se com o 6º mandamento; e Sem e Jafeth ao ficarem de costas para ela, simbolizaram a castidade, agiram ao contrário da mulher de Lot. Ou seja, aqueles que guardarem os olhos serão puros e verão a Deus e serão justos e sábios.

Fala-se de “tendas”, ora, a tenda tem a característica de mudar de lugar para lugar, o que pode simbolizar o apostolado.

Lembrando que Noé não teve culpa nenhuma da sua embriaguez, mas mesmo assim a cena teve um ar ridículo por causa de Cam, ou seja, todos nós ao servimos a Deus podemos ser motivos de riso para o mundo, mas só para o mundo, porque Deus há de nos recompensar por isso. Davi também teve o seu momento ridículo numa certa ocasião. Por fim a tenda e a capa remetem a ideia de proteção, ora nós temos de guardar a fé íntegra e inviolada. 

Cam habitou a África o continente dos escravos. Jafeth foram os europeus convertidos para a verdadeira fé (tenda de Sem).

Cam simboliza o pecado e por isso foi escravo, porque quem peca é escravo de seus vícios.



Recife, 15 de setembro de 2017.